terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"Um homem novo" - O caso Manuel Machado

"Há muito tempo que o homem se sentia mortiço, sem chama para aguentar os dias. Quando chegamos a este ponto de não haver lume que nos espicace, é muito mais difícil ter vontade de sair da cama…
Depois do divórcio, a família pouco ou nada queria saber dele, embora puxasse do parentesco sempre que o nome dele – por razões profissionais, aparecia na imprensa e nas televisões.
Era daqueles homens de que toda a gente gosta: afável mas reservado. No restaurante onde fazia as refeições, guardavam-lhe os pratos predilectos e uma marmita seguia todas as tardes com o resto do jantar, não fosse dar-lhe a fome durante a noite (a gente nunca sabe o apetite destes homens sozinhos…)
Foi durante mais um treino da sua equipa que o homem conheceu a rapariga: tinha vindo acompanhar a miudagem na visita de estudo ao estádio. A rapariga, porque estava ali de vigília, tratou de lhe fazer muitas perguntas e ele, que já se tinha esquecido de uns olhos curiosos, gostou dela. Os jogadores da bola até lhe mandaram uns piropos: era nova e «jeitosinha»...
Lembrou-se ele (e bem!) que os miúdos haviam de gostar de almoçar com a equipa, e tratou de se pôr muito perto da rapariga. Para quem o via há meses sem um sorriso largo, era como se o homem tivesse renascido naquela manhã: animado, falador e seguro. (Às vezes um amor desfeito, rouba-nos também essa segurança.)
Quando os miúdos subiram para o autocarro, ele despediu-se da rapariga. Estendeu-lhe a mão – talvez por falta de jeito, e ela deu-lha a cara e dois beijos rápidos. Foi depois disso que ele lhe entregou um papel e disse: «Está aqui o meu telemóvel se nos quiser visitar outra vez.» A rapariga sorriu e agradeceu, e o autocarro seguiu a sua viagem com os miúdos a entoarem as canções do costume.
Ao fim da tarde, o homem retomou a rotina: jantou no mesmo sítio de sempre e levou na mão a marmita com quem se tinha amigado há meses.
Chegou a casa, descalçou os ténis, despiu o fato de treino e tomou um banho. E quase teve a tentação de pensar na rapariga durante o duche, mas afastou dali a ideia. Pensou: «É na cama que vou ter tempo para sonhar com ela.»
Sentou-se a ver televisão, comeu os restos do jantar das sete e por fim subiu até ao quarto. Foi quando viu o telemóvel. Alguém lhe tinha ligado e ele não hesitou: respondeu à chamada. Era Ela. Nessa primeira noite ficaram horas à conversa. E foi assim o resto da semana. Até ela o decidir visitar sábado. Na véspera desse encontro ele quase não dormiu. A ansiedade afinal toma conta de nós a qualquer altura, mesmo quando estivemos tanto tempo dormentes.
O encontro correu muito bem: almoçaram, passearam e a conversa nunca se esgotava. Ela tinha menos 23 anos que ele, mas isso só parecia aproximá-los. Ao fim de três fins-de-semana seguidos, já toda a gente na cidade comentava aquele «namoro». E era por agora namoro sem pecado, sem carne. Os jogadores que ele treinava metiam-se com ele, gabavam-lhe a sorte e ao mesmo tempo criticavam-lhe a figura. «Você não tem pedalada pra aquilo.»
O homem, quando regressava a casa, antes de se pôr ao telefone com ela pela noite dentro, magicava na coisa da idade e de como fisicamente se sentia inferior, traído pelos anos e pela barriga a mais.
Um dia decidiu falar com o médico do clube que lhe apresentou uma solução rápida e que lhe traria a forma em dois tempos. Ou seja, a tempo de ambos consumarem aquele desejo que os unia.Ele teve de dizer à rapariga que se ausentaria por causa de trabalho duas semanas, mas que era impossível esquecê-la. E que já contava os dias para a ver de novo.
Ela soube dele antes disso. Quando os jornais falaram de uma lipoaspiração que tinha corrido mal."
O Sexo e a Cidália por Cidália Dias,

2 comentários:

hg disse...

Afinal não fui o único a fazer essa ligação.

Anónimo disse...

Mesmo os homens sensatos nunca deixam de ser crianças.